sexta-feira, 31 outubro, 2025

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Iphan transforma antigo cemitério de escravizados em sítio arqueológico

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) reconheceu oficialmente o Cemitério dos Africanos, localizado na Santa Casa de Misericórdia, em Salvador, como sítio arqueológico. A decisão muda o status do local, que deverá deixar de funcionar como estacionamento do Complexo da Pupileira, no bairro de Nazaré. A informação é da reportagem de Larissa Almeida, do Correio da Bahia.

O reconhecimento impede o uso do espaço para fins econômicos e sua destruição sem autorização do Iphan. Como patrimônio protegido, o local passa a ter guarda federal, e qualquer dano será tratado como crime contra o patrimônio cultural.

A homologação do cemitério como bem cultural nacional ocorreu após a apresentação dos resultados da pesquisa arqueológica, na última terça-feira (21). O evento contou com representantes do Ministério Público da Bahia, da Fundação Gregório de Matos (FGM), do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac) e da própria Santa Casa.

A arqueóloga Jeanne Almeida, responsável pelo estudo, destacou a importância do reconhecimento. “A partir do momento que comprovamos materialmente a presença desse cemitério, trazemos a possibilidade de a sociedade falar sobre o tema. Criamos uma área que serve para ressaltar a memória social e coletiva desses grupos e fomentar debates sobre suas contribuições”, afirmou.

Mapas antigos ajudaram a localizar o cemitério de escravizados do século 18 Foto: Silvana Oliveri

Estimativas e memória histórica

Segundo as estimativas iniciais, o cemitério pode abrigar entre 80 mil e 100 mil corpos em uma área de cerca de dois mil metros quadrados. Jeanne ressalta, no entanto, que o número ainda é impreciso. “Foi feito um cálculo com base em livros de banguês, que registravam sepultamentos feitos pela Santa Casa, mas muitos enterramentos não eram anotados. Grande parte da população ali sepultada era marginalizada, então muitos corpos foram deixados próximos, sem honra”, explicou.

Para a pesquisadora, o mais importante não é o número de corpos, mas a chance de resgatar uma história apagada. O espaço abrigou, durante 170 anos, escravizados, brancos pobres, pessoas livres que participaram de rebeliões, indigentes e presos — todos marginalizados na sociedade da época.

Descobertas e novas escavações

A equipe escavou 1,5 m² com profundidade de 3,30 metros, coletando 224 peças, sendo 100 fragmentos ósseos humanos de pelo menos duas pessoas. As ossadas foram encontradas em covas coletivas, o que comprova o tratamento desumano dado aos mortos. “Esses corpos eram depositados diretamente no solo, sem nenhuma proteção”, observou Jeanne.

Como o estudo teve caráter diagnóstico, não houve resgate total dos restos mortais. A arqueóloga acredita que ossadas estão espalhadas por toda a área, inclusive em camadas mais profundas, devido ao aterramento posterior do local.

Nesta segunda-feira (27), o Iphan solicitou a desocupação do estacionamento frontal da Pupileira e defendeu a criação de um memorial em homenagem às vítimas enterradas ali. O órgão também recomenda a continuidade das escavações e o envolvimento da comunidade.

“O espaço precisa ser preservado como campo santo e local de memória. Os pesquisadores recomendam a escuta da sociedade e a criação de um espaço público de homenagem às pessoas ali enterradas”, declarou o Iphan.

Cooperação nacional e novos passos

Os pesquisadores agora integram um comitê que reúne especialistas de outros sítios semelhantes, como o Cais do Valongo, no Rio de Janeiro — Patrimônio Mundial da Humanidade reconhecido pela Unesco. O objetivo é compartilhar experiências e definir a melhor forma de preservar o sítio baiano.

“Vamos dar continuidade à escuta social, inclusive com audiências públicas. Queremos incorporar as dores e necessidades sociais ao projeto, para que o espaço evoque a memória coletiva, especialmente das comunidades negras”, concluiu Jeanne Almeida.

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