Em sua primeira entrevista após assumir a Procuradoria-Geral da República, Augusto Aras, 60, disse à Folha esperar que o Supremo Tribunal Federal restrinja a decisão da maioria dos ministros que estipula que réus delatores apresentem alegações finais antes dos réus delatados. A decisão pode anular, por uma questão processual, uma série de sentenças da Operação Lava Jato.
Aras disse que não vê nulidade no inquérito aberto pelo Supremo para apurar fake news e ameaças contra integrantes da corte —diferentemente de sua antecessora, Raquel Dodge, que pediu o arquivamento da investigação. No cargo desde quinta (26), ele indicou as primeiras discordâncias de propostas do governo Jair Bolsonaro (PSL), ao comentar a exploração econômica de terras indígenas —que, para ele, deve respeitar os povos isolados— e discorrer sobre temas caros ao bolsonarismo, como a descriminalização da maconha. A entrevista foi concedida no gabinete de Aras na Procuradoria.
O sr. terá sua primeira sessão plenária no STF na próxima quarta (2), quando deve terminar um julgamento que já tem maioria para que réus delatores apresentem alegações finais antes dos delatados. Isso pode levar a anulações de sentenças. Preocupa o sr. essa maioria formada?
Em tese, posso apenas lembrar de princípios clássicos da teoria geral das nulidades processuais: “Pas de nullité sans grief”. “Não há nulidade sem prejuízo.” Isso significa dizer que só se declara nulidade de um ato judicial quando há prejuízo para alguém. Cada caso concreto vai desafiar a apreciação da existência de um prejuízo, porque, se um réu não tinha nada para arguir, ainda que pudesse falar e não falou, não há por que se nulificar.
Outra parte importante de registrar é que a moderna teoria constitucional remete a que cada julgamento formador de um “leading case” produza efeitos prospectivos, para a frente, nunca para trás —mesmo em matéria penal. Espero que a Suprema Corte module os efeitos dessa decisão, que não tenhamos a debacle do sistema judicial punitivo e, mais ainda, a promoção da impunidade.
O sr. assume num contexto de mudança de ventos em relação à Lava Jato. Há uma formação de consenso entre políticos de diferentes grupos. Há um filho do presidente [Flávio Bolsonaro] que se insurgiu contra uma investigação no Rio, que não é Lava Jato, mas tem o mesmo espírito. Todos se juntaram contra supostos abusos do Ministério Público. O que o sr. fará?
Compreendo a Lava Jato como um “case” bem-sucedido, independentemente de desvios, que são passíveis de correção. Temos dezenas de operações em curso. O que me parece é que precisamos que a PGR, o procurador-geral como órgão monocrático [individual] da chefia do Ministério Público e como presidente do CNMP [Conselho Nacional do Ministério Público], construa uma solução estruturada, organizada para todo o país, para que todas as operações compartilhem informações, funcionem com recursos orçamentários otimizados. O fato de termos operações distintas faz com que o Ministério Público comece a ser atomizado. As operações, quando desgarradas de seu núcleo central, que é a PGR, passam a ser uma instituição paralela e rompem com a unidade institucional. O processo civilizatório exige devido processo legal, que é o direito que tem cada cidadão de não ser processado senão pela autoridade competente, imparcial, que haja justa causa, que haja direito ao contraditório e à ampla defesa.
O sr. fala em devido processo legal. Começam a surgir dúvidas a partir das mensagens de Telegram divulgadas pelo site The Intercept Brasil e outros veículos, como a Folha. Que tratamento o MPF dará?
O dever do Ministério Público não é punir sem a devida fundamentação legal. É buscar a verdade real. Órgãos de Estado precisam respeitar a segurança jurídica. A tal ponto que, para que aceitemos o “plea bargain” [previsto no pacote anticrime do ministro Sergio Moro] é preciso que verifiquemos que lá nos EUA [de onde a proposta foi importada] haja motivação ética do Ministério Público. Quando o Ministério Público tem um caso diante de si, é preciso abrir para o réu todas as provas de que tem conhecimento, porque, se porventura, um membro do Ministério Público blefar e o réu entender, a posteriori, que aquelas provas não existiam, este réu pode anular o acordo feito e ser anulado o processo.
No contexto de buscar segurança jurídica, se o Supremo validar as mensagens, que efeitos terá nos processos da Lava Jato e sobre os procuradores?
A verdade dos fatos não pode ser suprimida pela eventual ilicitude da prova ou dos meios. O que se questiona é: qual a sanção, qual o resultado disto para os agentes públicos que violaram os meios para atingir fins, por mais nobres que sejam? Se a verdade real é que o réu A, B ou C cometeu crime, o Estado de direito impõe a preservação dessas condenações em função dos julgamentos já operados. Os desdobramentos, no que toca aos agentes que abusaram desses poderes, serão objeto de apreciação no CNMP.
Como fica a situação de Deltan Dallagnol?
O colega Deltan deverá se defender como qualquer cidadão e haverá de merecer um julgamento administrativo, ético, disciplinar de um colegiado imparcial, técnico, devidamente motivado. É assim que se espera que os seus atos sejam julgados.
O que o sr. acha do inquérito aberto pelo próprio STF a fim de defender seus integrantes? A doutrina registra que não há nulidade de inquéritos, desde que a autoridade que promove o inquérito tenha competência [atribuição] para produzi-lo e haja, minimamente, indícios da existência de delito. O inquérito poderia ser aberto pelo próprio STF, pela autoridade policial, pelo Ministério Público. O que é relevante firmar é o destinatário das conclusões do inquérito, e ele só pode ser um: o Ministério Público. Todas as conclusões deverão ser enviadas para o órgão do Ministério Público com atribuições para promover, em tese, a ação penal.
Isso é uma mudança em relação à gestão de Raquel Dodge. O sr. não defende o arquivamento?
Em hipótese alguma. Não posso ignorar o dever de apreciar os fatos, buscando a verdade real, para efeito de, sendo o caso, adotar as medidas cabíveis.