terça-feira, 16 abril, 2024

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Aridez e afeto marcam exposição do fotógrafo baiano João Machado

Tem uns amarelos, uns azuis, que só no sertão. João Machado sai caçando essas cores nas primeiras luzes da manhã, nas últimas da noite. É assim há mais de quinze anos, quando passou a fotografar de modo mais sistemático sua cidade natal, Xique-Xique, e os lugares do entorno. Agrupava as imagens em séries: vaqueiros, penitentes, pescadores, cotidiano, céu estrelado. Enviou algumas delas para a Galeria Nikon, em São Paulo, e quando foi conhecer os responsáveis pessoalmente, recebeu o convite para fazer uma exposição. Já tinham selecionado as fotos, um tanto de cada série, e para surpresa de João avisaram que também já tinham a data, o título da mostra e até o bufê que seria servido no dia da abertura: acarajé e escondidinho de carne-seca. Foi assim que em 2015 nasceu O Sertão de João Machado, que agora chega a Salvador.

A exposição está em cartaz na Caixa Cultural, no centro da cidade, até o dia 13 de maio. Quem chega é recebido com a imagem de um romeiro à frente de um Cristo crucificado, os braços semi-abertos num cenário vermelho-sangue. Por 40 anos, o pai de João peregrinou a Bom Jesus da Lapa em agosto, montado num pau-de-arara, e lhe contava histórias. Quis conhecer de perto a romaria e foi, em 2002. Agora, volta sempre que consegue. Nunca pôde ir acompanhado do pai, mas é como se estivesse ali vendo tudo por ele, dando finalmente vida à tanta memória imaginada.

As outras 34 imagens da mostra também são marcadas por aridez e afeto. Numa casa de pau-a-pique, uma mulher reza o terço debaixo do mosquiteiro. Mais adiante, dois homens caminham sob as águas de um rio seco, enquanto a tarde cai, outra vez são os pés que brotam do bucho de um jegue, e ali um céu transborda de estrelas, tão perto do chão que dá até vontade de dizer que parece possível pegar uma e levar para casa, presenteando um amor que se tenha – mas isso não vamos escrever, para você não cochichar que é brega.

Uma parte da exposição é dedicada aos céus estrelados do sertão. Foto: João Machado / Divulgação

Depois de Salvador, a exposição vai para o Rio de Janeiro. João conta que o sertão baiano ainda não está nos planos, fica só imaginando a beleza que seria. Teve gente de lá que veio para a abertura, que aconteceu no dia 6 de março. Para dar um olhar seu a um lugar já tão fotografado, João diz que não sai nunca com a foto na cabeça. Está para o que ocorrer. O que estuda muito antes são os horários em que vai fotografar. “Tem o horário do azul, do amarelo. É algo exato. Também tem muita coisa que faço hoje com o digital que é a continuação do filme. É um processo que, para mim, não está morto”.

Para se distanciar de imediatismos, ele vai sem pressa. Mapeia o lugar antes de fotografar – “faço um 360º nele” – e conversa com quem encontra pelo caminho, para não ser um estranho. “Fala com um, fala com outro, e quando menos se espera, você é um deles”.

CÂMARA NA OBRA

João virou fotógrafo por acaso. Aos 19 anos, saiu de Xique-Xique para tentar a vida em São Paulo, como fizeram e fazem tantos sertanejos, sem plano nenhum na mala. A irmã o acolheu e ele passou cinco meses procurando emprego, até encontrar um serviço como servente de pedreiro. Um colega ia viajar e estava vendendo a câmera. Quis comprá-la por curiosidade, nunca tinha se aproximado de uma. Com o primeiro filme registrou a sobrinha, o cachorro que andava pela casa. Na hora de revelar, foi uma decepção. O moço do laboratório falou que o filme tinha velado, e ele obviamente não sabia o que era isso. Procurou uma assistência técnica e o rapaz perguntou se ele não queria aprender a fotografar.

Quando saía do trabalho, João passava lá. Parou de se dividir compulsoriamente, quando foi demitido da obra. O rapaz da loja falou que ele podia continuar ali, recebendo uma ajuda de custo. Era 1993. Desde então, João não fez outra coisa que não fotografia. Trabalhou em empresas de eventos, fazendo fotos de casamento e formatura, em estúdio, e foi fotojornalista. Nos

Romeiro em Bom Jesus da Lapa. Foto: João Machado / Divulgação

períodos de férias, voltava para a Bahia levando um monte de filmes e ia capturar os meninos correndo, tomando banho de rio, as simplicidades das roças. “O que eu vivi na época de menino, eu estava registrando na câmera, sem pretensão nenhuma. Era como se fosse uma diversão”.

A diversão o fez artista. Em 1997, realizou a primeira mostra, na Casa Fuji, com imagens das olarias de São Paulo, e “pegou gosto” pela coisa, como diz. Ainda mantém no estado o seu QG, mas está sempre viajando para fotografar. Em Salvador, vem registrar a Festa de Iemanjá e o amanhecer da feira de São Joaquim. “Gosto da primeira hora, quando os homens estão

descarregando os caminhões”.

Está agora trabalhando numa série intitulada Entre humanos, com a multidão de manequins que encontrou na Feira da Sulanca, em Caruaru. “Chega uma hora que parece que o manequim é mais importante que tudo. Um tá montando a perna, o outro o braço, outro tá carregando, vestindo… Eu passei a fotografar a relação dessas pessoas com os manequins. E de Caruaru fui expandindo para outras feiras do sertão. Cada lugar que eu vou tem manequim para ser fotografado”.

E como não larga Xique-Xique, está produzindo uma nova obra por lá, chamada Ilhados na seca, para mostrar o cotidiano dos moradores quando o rio São Francisco está em baixa. “Num percurso de 15 km, as pessoas gastam duas, três horas para chegar ao destino”. Sempre que volta ao lugar onde nasceu, sente falta de não encontrar os rolimãs descendo as ruas, as crianças brincando de carrinho de lata, as fogueiras que se espalhavam nas festas juninas, iluminando as quadrilhas e os casamentos na roça. Tem pena do que se acabou sem antes ter lhe dado a chance de fotografar. Mas do que resiste, nada lhe escapa.

O SERTÃO DE JOÃO MACHADO Até 13 de maio. De terça a domingo, das 9h às 18h, na Caixa Cultural Salvador (Rua Carlos Gomes, 57, Centro). Tel. (71) 3421-4200. Grátis.

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