segunda-feira, 23 dezembro, 2024

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Documentário narra história de operário negro confundido com assaltante pela PM

O Caso do Homem Errado, vencedor do prêmio de Melhor Filme no 9º Festival Internacional de Cine Latino, tem lançamento nesta sexta (27)

Em 14 de maio de 1987, o jovem operário Júlio César de Melo Pinto estava chegando do trabalho quando, nas proximidades da sua casa, ouviu disparos de arma de fogo. O trabalhador resolveu verificar o acontecido e, ao se aproximar do local, foi confundido com assaltantes de um supermercado. Morto a tiros por polícias, Júlio não teve a oportunidade da defesa. O crime, ocorrido na zona leste de Porto Alegre, ficou conhecido, após repercussão e comoção nacional, como o Caso do Homem Errado.

A investigação, que apurou a forma como o operário foi assassinado e confirmou que ele não era um criminoso, foi realizada em meio a uma forte pressão exercida por movimentos sociais e reportagens publicadas na imprensa. O caso ganhou notoriedade ainda maior após a divulgação de fotos que mostravam Júlio sendo colocado com vida na viatura, chegando, 37 minutos depois, morto a tiros no hospital. A ação da Polícia Militar colocava, assim, em pauta, um possível racismo. Afinal, se Júlio não fosse negro e, sim, um branco, estaria ele morto?

Documentário O Caso do Homem Errado revive o  caso de Júlio e debate a realidade racista no Brasil
(Foto: Reprodução)

O documentário
A diretora Camila de Moraes, 30 anos,  não tinha completado nem mesmo um ano de idade quando a situação veio à tona. A produtora Mariani Ferreira, 29,  não havia sequer nascido. Mas as jornalistas, ambas negras, sabem bem que a situação atual ainda não é tão diferente no país. Por este motivo, as duas se uniram para não deixar essa história, símbolo de tantas outras, morrer como Júlio. Confira o trailer:

Por meio de pesquisas e depoimentos, as jovens cineastas relembram o episódio no documentário O Caso do Homem Errado, que entra em cartaz na capital baiana a partir desta sexta-feira (27), na SaladeArte Cinema do Museu, localizado no Corredor da Vitória. Após a exibição do filme ocorrerá um debate com a presença da diretora, da professora, doutora em Teoria e Crítica da Literatura e Cultura pela UFBA, Denise Carrascosa, e do jornalista e escritor Edson Cardoso.

A produção foi vencedora do prêmio de Melhor Filme no 9º Festival Internacional de Cine Latino
(Foto: Reprodução)

Na obra, que ganhou o prêmio de Melhor Filme no 9º Festival Internacional de Cine Latino, a história do jovem é contada através de depoimentos como o de Ronaldo Bernardi, o fotógrafo que fez as imagens que tornaram o caso conhecido, da viúva do operário, Juçara Pinto, e de nomes respeitados da luta pelos direitos humanos e do movimento negro no Brasil.

“Matar por racismo não é simplesmente ‘matar negros’, é matar uma grande parte da sociedade brasileira. Essa produção não é somente para que nós, negros, possamos visualizar e debater. É para todos, porque a consequência, o retrocesso e o atraso da evolução alcança a todos. E, infelizmente, nos dias atuais esse tipo de situação tem acontecido com ainda mais frequência. Encontramos no audiovisual um meio para discutir isso relembrando historicamente a importância do assunto através de um personagem que tanto nos diz, mesmo sem ter tido sua chance de ter voz”, pontua a editora Camila de Moraes.

Segundo dados da CPI, um negro morre a cada 23 minutos no país
(Foto: Divulgação)

Ainda hoje
A produção independente, feita pela produtora de cinema gaúcha Praça de Filmes, demorou oito anos para conseguir recursos financeiros e ser, finalmente, gravada em 2016. “Não achávamos suporte. O tema não interessava para essa indústria que é majoritariamente branca e masculina”, conta a diretora. O documentário iniciou o circuito comercial nacional em Porto Alegre no mês de março,  numa trágica coincidência, uma semana após a execução da vereadora carioca Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes, no Rio de Janeiro.

Além do caso que dá título ao filme, a produção discute ainda as mortes de pessoas negras provocadas pela polícia. A Anistia Internacional, inclusive, fala de genocídio da juventude negra devido ao grande número de jovens negros assassinados no país. O filme também apresenta dados atuais sobre essa violência contra a comunidade negra.

Segundo dados da CPI do Senado sobre o Assassinato de Jovens, todo ano 23.100 jovens negros de 15 a 29 anos são assassinados. São 63 por dia. Um a cada 23 minutos. A CPI toma por base os números do Mapa da Violência, realizado desde 1998 pelo sociólogo Julio Jacobo Wasilfisz a partir de dados oficiais do Sistema de Informações de Mortalidade do Ministério da Saúde. O último Mapa da Violência contabilizou que cerca de 30 mil jovens são assassinados por ano no Brasil e 77% são negros. Ainda de acordo com o Mapa, a taxa de homicídios entre jovens negros é quase quatro vezes a verificada entre os brancos, 36,9 a cada mil habitantes, contra 9,6.

Cinema negro
Segundo dados apresentados no final de janeiro  pela Agência Nacional de Cinema (Ancine), que fazem parte do estudo Diversidade de Gênero e Raça nos Lançamentos de 2016, dos 142 filmes de longa-metragens lançados comercialmente no período, 75,4% deles foram dirigidos por os homens brancos. Na outra ponta desta tabela, as mulheres negras não assinaram a direção, o roteiro ou a produção executiva de nenhum filme nacional naquele ano.

A diretora Camila de Moraes espera que o projeto possa incentivar outras produções cinematográficas de mulheres negras 
(Foto: Divulgação)

O estudo mostra que 19,7% de mulheres brancas dirigiram longas. Os homens negros dirigiram 2,1%. O roteiro desses filmes também foi escrito principalmente por homens brancos, 59,9%, mulheres brancas, 16,2%, e parcerias entre homens brancos e mulheres brancas, 16,9%. Os homens negros foram roteiristas em 2,1% dos filmes e estiveram em parcerias com homens brancos em 3,5%.

“Diante desses dados é preciso criar medidas específicas para garantir um olhar mais plural, pois essas produções que temos são os olhares que vão construir o imaginário das novas gerações, e essas produções são feitas, na maioria das vezes, por homens brancos. As disparidades que vemos são o reflexo da nossa cultura”, conta Camila. “Nós fizemos questão de ocupar o espaço de direção e produção executiva do documentário O Caso do Homem Errado, para demarcar espaço, é um ato político, é que para os próximos estudos da Ancine sobre o ano de 2017 tenha registrado, ao menos, uma produção de longa-metragem dirigida por uma mulher negra e que entrou em circuito comercial”, conclui.

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