Centenas de casos de impunidade envolvendo deputados e senadores por crimes que incluíam corrupção, assassinatos e tráfico de drogas marcaram a década de 1990. Na prática, a exigência de autorização da Câmara ou do Senado para processar parlamentares tornava-os quase inatingíveis enquanto durava o mandato.
A pressão contra esse quadro levou o Congresso a aprovar, em dezembro de 2001, a Emenda Constitucional 35, que acabou com a necessidade de autorização prévia para processar criminalmente um parlamentar. Hoje, a proposta em discussão na Câmara promete voltar ao ponto de partida.
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 3 de 2021, conhecida como PEC da Blindagem ou PEC das Prerrogativas, prevê que seja necessária a autorização da maioria das casas legislativas, em votação com voto secreto, para que parlamentares respondam a processos judiciais. A iniciativa reabre o debate sobre limites entre proteção institucional e impunidade.
Tereza Cruvinel, jornalista que atuou mais de 20 anos na editoria de política do jornal O Globo e acompanhou a Constituinte e a promulgação da EC 35, relata o que motivou a mudança em 2001. “Começaram a surgir parlamentares com envolvimentos criminais. Muitas vezes, eles pertenciam a partidos poderosos, e o Judiciário não conseguia as licenças para processá-los. Quando o Supremo pedia, era invariavelmente negado. Quase 300 pedidos foram negados até 2001”, lembrou.
“Foi uma reprovação da sociedade àquele protecionismo extremo de parlamentares, que eram praticamente inalcançáveis pela lei. Houve uma confusão entre imunidade e impunidade”, completou Cruvinel, que entre 2007 e 2011 presidiu a Empresa Brasil de Comunicação (EBC).
Casos emblemáticos reforçaram a opinião pública. Eleito em 1998, o deputado acreano Hildebrando Pascoal acabou condenado, após deixar o Parlamento, por tráfico de drogas e diversos homicídios, entre eles o esquartejamento de desafetos com motosserra. Mesmo com provas, o Congresso preferiu caçar o mandato a autorizar ação penal, segundo relatos da época.
Outro episódio que impulsionou a EC 35 foi o desabamento do Edifício Palace 2, em 1998, no Rio de Janeiro, que matou oito pessoas. O prédio pertencia ao engenheiro e deputado federal Sérgio Naya, responsável técnico pela obra. Em paralelo, o senador Ronaldo Cunha Lima, que atirou contra o rival Tarcísio Burity em 1993, só foi processado depois da emenda. Cunha Lima venceu habeas corpus, foi eleito senador em 1995 e, mesmo com pedido do STF em 1995, teve a autorização negada pelo Senado em 1999. Só após a EC 35 o processo seguiu.
A intenção original de 1988 também é lembrada. Ao incluir a exigência de autorização para processos contra parlamentares, a Constituinte quis proteger representantes após a ditadura militar. “A constituinte, que vinha para encerrar uma ditadura, teve a intenção de proteger os parlamentares contra eventuais futuros abusos, um retrocesso, uma nova ditadura ou meia ditadura”, disse Cruvinel. Hoje, segundo ela, parte dos parlamentares busca “garantir uma blindagem contra quaisquer iniciativas da Justiça, inclusive dos delitos que envolvem emendas parlamentares”.
Críticos afirmam que a PEC 3 de 2021 pode favorecer desvios em emendas e práticas corruptas. A analista legislativa Orlange Maria Brito escreveu que a proteção concebida para o contexto da redemocratização foi “desviada da sua correta utilização” e que isso justificou a revisão da regra.
Defensores da PEC afirmam que a proposta serve para resguardar o exercício do mandato contra interferências indevidas do Judiciário e supostas “perseguições políticas”. O relator da PEC na Câmara, deputado Claudio Cajado (PP-BA), afirmou: “Isso aqui não é uma licença para abusos do exercício do mandato, é um escudo protetivo da defesa do parlamentar, da soberania do voto e, acima de tudo, do respeito à Câmara dos Deputados e ao Senado”.
O deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) defendeu que o Congresso não barraria investigações contra criminosos. “Quem cometer crime vai pagar, uai. É simples assim, a gente vota, e a gente mostra que essa casa é contra criminoso”, disse Nikolas durante a sessão.
A proposta enfrenta resistência de especialistas e organizações de combate à corrupção. O eixo do debate é a definição de limites entre imunidade necessária à independência legislativa e mecanismos que evitem a proteção que torne a Justiça ineficaz.
A EC 35 de 2001 foi vista como resposta direta à percepção pública de impunidade. Desde então, casos de renúncia e de manobras processuais seguiram suscitando críticas sobre brechas institucionais que permitem postergar ou desviar a responsabilização penal.
A retomada dessa discussão via PEC 3/2021 ocorre em um contexto político polarizado, em que argumentos sobre autonomia do Legislativo se misturam a preocupações concretas com integridade pública e controle de recursos públicos.
*Com inforamções da Agência Brasil